Por Joana Patacas*, em 17 de abril de 2024
Nos palcos onde as notas musicais oscilam entre a imponência da voz lírica e a exuberância do som, o encenador Allex Aguilera emerge como uma força criadora no mundo da ópera, combinando tradição e inovação num diálogo vibrante que expande os horizontes da arte operística.
Consagrado pela crítica como um visionário do palco, ascende ao panteão dos grandes nomes da ópera com um trabalho que junta a sobriedade clássica à inovação cénica, recebendo aclamação unânime pelas suas impactantes e minuciosas encenações, que elevam os espetáculos a experiências transformadoras.
“Um cume de felicidade operática (...) parecia impossível fazer uma produção operática mais extraordinária. Bem, foi exatamente isso que aconteceu com "Otello" de Verdi, que estreou no domingo. Esta é a apoteose da temporada. Atingimos o auge da felicidade operática. Ficará na história da Salle Garnier como o "Otello de 2019". (...) A encenação de Allex Aguilera, com o seu muito apreciado classicismo, não é menos refinada e pormenorizada.” André Peyrègne sobre “Otelo” in Monaco Matin, 2019
Ao longo de sua carreira internacional, Allex Aguilera tem trabalhado nas melhores casas de ópera, como a Ópera Bastille e o Théâtre du Châlet, em Paris ou a Ópera de Monte Carlo, tendo sido também coordenador de produção e encenador do Palau de les Arts Reina Sofía, em Valência, durante 17 anos.
“Estas considerações prévias estiveram presentes no ideário estético de Allex Aguilera aquando da conceção da cenografia. A coerência cromática, o simbolismo das paisagens e a definição precisa das posições das personagens, elevadas através da iluminação a uma categoria icónica, são alguns dos êxitos do encenador.” Gonzalo Roldán sobre “Tristão e Isolda” in Opera World, 2023
Afirma ter como missão de tornar a ópera acessível a todos os públicos. Procura derrubar fronteiras, estabelecer um diálogo aberto com o público e fazer da ópera um espaço de partilha, onde conduz o espetador numa experiência emocional profunda, enriquecedora e transformadora, independentemente da temática em cena.
Aguilera está em Lisboa para a encenação da ópera “Felizmente Há Luar!”, com estreia marcada para o dia 1 de Maio no Teatro São Luiz, no âmbito das celebrações dos 50 anos do 25 de Abril de 1974, e que tem música e libretto de Alexandre Delgado a partir do original de Luís de Sttau Monteiro, direção de arte de Nuno Esteves e direção artística e musical do maestro Osvaldo Ferreira.
Nesta entrevista à ProART, conduzida por Joana Patacas (JP), Allex Aguilera fala do seu caminho artístico e revela como a harmonia musical, a coreografia e o texto se entrelaçam na criação de experiências operáticas que tocam o âmago da condição humana, sob uma luz sempre inovadora e envolvente.
JP: Como é que descobriu a sua paixão pela música, em especial pela ópera e pelo canto lírico?
Allex: Esse interesse pela ópera e pela música clássica surgiu quando eu era bastante jovem. Recebi o meu primeiro leitor de cassetes como presente, e nele havia uma cassete demo que durava apenas alguns segundos, apenas para testar o aparelho. Quando o fiz funcionar, ouvi uma peça de música clássica e fiquei fascinado. Era a Dança Húngara nº 5, de Brahms. A minha curiosidade levou-me a explorar mais sobre o assunto. Recordo-me de ter visto um anúncio na televisão a promover os melhores compositores de todos os tempos e decidi encomendar o conjunto de LPs. Quando os recebi, o primeiro que ouvi foi Brahms, claro, mas não me fiquei por aí. Os discos também incluíam obras de Beethoven e Mozart, e o meu interesse foi aumentando. Ao ouvir pela primeira vez a Nona Sinfonia de Beethoven, fiquei completamente fascinado, especialmente pela parte coral, que me deixou estupefacto. Isso despertou em mim uma paixão pela voz humana e comecei-me a interessar cada vez mais pelo canto lírico. Após me mudar para a Suíça, continuei a explorar a música vocal, e deparei-me com um mundo novo quando comprei um CD da ópera “L'Italiana in Algeri”, de Rossini. Essa descoberta levou-me a focar ainda mais nas obras operáticas. Embora ao longo dos anos tenha revisitado e apreciado também a música sinfónica, sou muito mais operístico do que sinfónico.
JP: Fez a sua formação musical em Genebra, na Suíça. O que é que o motivou a sair do Brasil e vir para a Europa?
Allex: Nasci no Brasil e, desde muito cedo, senti o desejo de conhecer outras realidades. Fui o único da minha família a sair de casa, tornando-me independente aos 14 anos. A decisão de ir para a Europa surgiu um pouco mais tarde, aos 16 anos. Naquela época, eu já trabalhava com línguas, falava italiano e inglês, e queria aprender mais uma; o francês pareceu-me a escolha ideal. Tinha um amigo que me sugeriu ir para a Suíça, mas nessa altura a ideia era apenas ficar durante os três meses de verão e estudar francês. Esses três meses transformaram-se em dez anos. Estudei na universidade, claro, em francês, e depois numa escola de comércio internacional, algo que não estava relacionado com a música. Foi nessa altura que, apesar de já gostar de música clássica, conheci um amigo que estudava canto lírico e que me incentivou a explorar esse género. Experimentei e descobri que era baixo-barítono e que tinha voz para estudar canto. Tive uma professora que me preparou para uma audição no Conservatório de Música em Genebra, algo que exigia um nível médio a avançado. Após cerca de um ano de preparação intensiva, ela achou que eu estava pronto para a audição. Encorajado pela audácia da juventude aceitei o desafio. Hoje talvez não o fizesse. Nas provas, apresentei-me com o papel de Papageno, da ópera "A Flauta Mágica" de Mozart, entre outras peças, e, para minha surpresa, fui aceite, e iniciei os meus estudos formais em musicologia e canto lírico.
JP: E como é que se dá a transição para a carreia de encenador?
Allex: Acabei por me tornar encenador por causa de Samuel Ramey, um baixo operístico extremamente relevante naquela época e o meu ídolo. Em 1993, enquanto estudava no conservatório, a minha professora informou-me de que ele ia interpretar o papel de Boris Godunov na ópera de Modest Mussorgsky no Grand Théâtre de Genève. Estavam à procura de atores figurantes com noção de música e ela sugeriu que eu fosse às audições, porque seria uma oportunidade única para conhecer pessoalmente o trabalho de Ramey. Motivado pela audácia da juventude, candidatei-me e fui selecionado. Esta experiência permitiu-me não só vê-lo a atuar ao vivo mas também observar todo o processo de produção de uma ópera. Fiquei fascinado com tudo o que acontecia nos bastidores até à apresentação final: os ensaios, a preparação, a cenografia, a iluminação… Descobri a minha vocação e percebi que não queria ser cantor, mas sim trabalhar no teatro. Soube que no Grand Théâtre havia uma vaga para direção de palco, fui falar com o diretor e, como estava a estudar canto lírico e sabia ler partituras, fui contratado à experiência por três meses. Acabei por ficar dois anos. Era o primeiro a chegar e o último a sair. Possibilitou-me aprender sobre todos os aspetos técnicos da produção de uma ópera e isso foi fundamental para o desenvolvimento da minha carreira como encenador. Conheci muitas pessoas, fiz muitas produções e aprendi muito com os erros. Foi assim que formei o meu caráter. O talento foi surgindo da experiência. Trabalhei como assistente, colaborando com grandes encenadores e profissionais do teatro lírico. A minha aprendizagem foi feita ao lado dos melhores.
JP: E dois anos mais tarde, em 1995, mudou-se para Barcelona. Fez lá os seus estudos superiores, mas em Direção Cinematográfica. Pensou em “desistir” da ópera?
Allex: Esse foi o ano em que fui de férias para Barcelona. Nessa altura, admito que me sentia saturado. Estava completamente imerso no universo da ópera. Quem estuda e se envolve profundamente com a ópera acaba por viver num círculo bastante restrito, e senti que precisava de mais. Não queria limitar a minha vida e carreira à ópera. Então, durante as minhas férias de verão em Barcelona — ainda vivia na Suíça nessa época —, comecei a ponderar sobre o que realmente queria da minha vida. Tinha um cargo estável no teatro em Genebra e sabia que podia permanecer ali e dedicar a minha vida toda à ópera No entanto, sentia que, sendo jovem, deveria explorar mais do mundo. Durante esse período de reflexão, deparei-me com um anúncio de uma escola de cinema, especializada em Direção Cinematográfica e escrita de guiões. Interessei-me de imediato. O curso tinha a duração de três anos e as aulas começavam em outubro. Li o programa e decidi fazer uma mudança drástica na minha vida, mudando-me para Espanha e deixando tudo para trás. Muitos consideraram uma loucura abandonar um posto fixo num dos teatros mais importantes do mundo, mas senti que era necessário para ver e experienciar mais do mundo.
JP: Mas não deixou o teatro…
Allex: Embora residisse em Barcelona, trabalhava muito em Paris como assistente de encenação na Ópera Bastille e no Théâtre du Châtelet. Também expandi os meus horizontes para além da ópera e, em Barcelona, comecei a dedicar-me ao teatro de prosa. Como já tinha alguma experiência como assistente, dirigi uma pequena peça – “Torrijas de cerdo” – no Café Teatro Llantiol. Encenei uma segunda peça – “Gaivotas Subterrâneas”, de A, Vallejo –, desta vez com um caráter mais profissional, no Teatro Can Felipa. A peça chamou a atenção do diretor da Sala Beckett, um teatro de grande prestígio em Barcelona, que assistiu à minha peça e me convidou para levar essa produção para esse teatro. Foram oportunidades que reforçaram a minha paixão e dedicação à encenação teatral.
JP: E quando é que regressa em definitivo à ópera como encenador?
Allex: A ópera sempre me acompanhou, mesmo tendo explorado outras áreas, como a direção cinematográfica de curtas-metragens e a encenação de peças em prosa. Contudo, foi precisamente quando estava a consolidar o meu percurso como encenador de teatro, que um acontecimento decisivo que precipitou o meu regresso definitivo ao mundo da ópera. Estávamos em 2005, quando recebi uma chamada de um conhecido, diretor técnico de produção, com quem tinha trabalhado anteriormente em Paris e numa digressão pelo Japão, e que estava encarregado de lançar um novo projeto de ópera em Valência – o Palau de les Arts Reina Sofía. Ele foi direto ao assunto, dizendo que precisavam de mim com urgência. Fui para Valência sem saber ao certo o que me esperava e com a expectativa de ficar apenas uma ou duas semanas – acabei por ficar 17 anos. Dediquei-me de tal forma, que a diretora artística, Helga Schmidt, me convenceu a ficar em Valência, considerando-me essencial para a inauguração do teatro. Então, aceitei um contrato como coordenador de produção, um título criado especificamente para mim, pois quis um compromisso formal para deixar a minha vida em Barcelona. Envolver-me na abertura do teatro significou longas jornadas de trabalho, mas adorei cada momento. Apresentámos a primeira ópera em 2006 – “Fidelio” de Beethoven.
JP: Que tipo de trabalho desenvolveu em Valência?
Allex: Fui responsável pela implementação do sistema de gestão de palco no Palau de les Arts Reina Sofía, adaptando o que tinha aprendido na Ópera Bastille em Paris. A qualidade do trabalho que desenvolvemos, a nível organizacional e artístico, posicionou a ópera de Valência como uma das mais prestigiadas de Espanha, na minha opinião, mesmo a melhor. O sistema está centrado no gestor de palco (stage manager), que assume a liderança e a direção durante os ensaios e as apresentações, assegurando a fluidez e a coordenação entre todos os elementos da produção. É apoiado por dois assistentes que fazem a gestão e coordenação da equipa, garantindo o funcionamento de todos os aspetos técnicos e logísticos. Este modelo de gestão foi, e continua a ser, fundamental para o sucesso contínuo das produções da ópera do Palau. Após estar tudo implementado, decidi voltar ao papel de assistente de direção. É nesse ambiente que me sinto verdadeiramente realizado.
JP: A partir daí dirigiu várias óperas importantes e colaborou com grandes artistas.
Allex: Sim, a minha carreira tem superado todas as expectativas. Tive o privilégio de trabalhar em produções de óperas importantes, como “Turandot” de Puccini, no Festival de Ópera de A Coruña e na Ópera de Monte Carlo, “Tristão e Isolda” de Wagner no V Festival del Mediterrani no Palau de les Arts Reina Sofía, sob a direção musical de Zubin Mehta, e “Yerma” de Heitor VIlla-Lobos no Festival Amazonas de Ópera de Manaus, entre tantas outras. Tive a oportunidade de trabalhar com grandes artistas, que gosto sempre de lembrar, como Chen Kaige, Werner Herzog, Lorin Maazel, Plácido Domingo, La Fura dels Baús, Valery Gerguiev e Zubin Mehta, como já referi.
JP: Já trabalhou nas melhoras casas de ópera, mas um dos seus objetivos é tornar a ópera acessível a todos os públicos. Foi com essa motivação que foi guionista e encenador do espetáculo “El científico en la Ópera”?
Allex: Esse espetáculo permitiu-me, a mim e ao tenor José Manuel Zapata, transformar a ópera numa aventura acessível e atraente para todos. Utilizando uma comédia musical repleta de trechos operísticos icónicos, o projeto nasceu do desejo de aproximar o público, especialmente as famílias e os mais jovens, a este género artístico. Através da música e do humor, explicamos os elementos que constituem uma ópera, numa tentativa de desfazer o mito de que é preciso "entender de ópera" para desfrutar dela. Esta abordagem foi um enorme sucesso e a prova de que é possível falar sobre ópera de uma forma divertida e educativa. Foi uma experiência que reforçou a minha crença de que a ópera é, verdadeiramente, para todos e não um género elitista.
JP: O guionismo é uma arte intimamente ligada ao cinema, uma das suas áreas de estudo. De que forma é que a cinematografia influenciou a sua visão?
Allex: Foi essencial. Não hesito em afirmar que aprendi imenso e expandi os meus horizontes culturais. No mundo da ópera, sentia-me de certa forma limitado ao universo lírico, sem a amplitude cultural de que realmente necessitava. Através dos estudos cinematográficos aprofundei-me no tratado das cores, dediquei-me à leitura extensiva e analisei obras de grandes cineastas de todo o mundo. Nas aulas, dissecávamos o trabalho dos realizadores, o que, por sua vez, abriu portas para a exploração de outras áreas culturais, como a literatura. Esses três anos de aprendizagem foram muito enriquecedores.
JP: E como é que utiliza esse conhecimento como encenador?
Allex: Comecei a encenar peças em prosa já com uma base muito sólida, especialmente em cultura pictórica Para um encenador, é essencial ter um entendimento aprofundado de vários elementos artísticos, como as cores, a composição e a temática das obras, incluindo aquelas que abordam assuntos mais delicados. Fui acumulando este conhecimento ao longo dos anos, mas aprendi este “código” do zero, pois existe uma complexidade no trabalho do encenador que vai além do conhecimento superficial. Encenar uma ópera é mais do que a mera transposição de competências de outras áreas artísticas, como o cinema ou o teatro. Implica conhecer a fundo as necessidades da estrutura musical, dos cantores e da obra no seu conjunto. Por exemplo, há encenadores que não sabem ler partituras, embora essa capacidade facilite na interpretação e contextualização da peça operística. Ultimamente, tenho observado uma tendência preocupante que considero uma espécie de "intrusão" no mundo da ópera de encenadores que não possuem a formação ou o entendimento adequado, uma situação que pode comprometer a qualidade e a integridade das produções operísticas
JP: Na sua opinião, porque é que essa “intrusão” acontece e de que forma prejudica as produções operáticas?
Allex: Não vou mencionar nomes, mas já trabalhei com pessoas que não sabiam nada de ópera, mas assinavam a produção apenas por serem famosas. Refiro-me a cineastas e diretores de teatro, o que, para mim, é uma “intrusão. Parece bem para uma casa de ópera convidar um diretor de cinema renomado para encenar uma ópera. Mas, na prática, não funciona assim. Eles até podem ter uma ideia geral, esboçar a cenografia e conceber o tema, mas na hora de trabalhar diretamente com os cantores, falham. Falta-lhes o conhecimento dos códigos específicos da ópera. Estou decidido a combater com o meu trabalho este tipo de “intrusões” crescentes na profissão de encenador de ópera. Não me parece justo que tantos talentos, com profundo conhecimento e experiência em ópera, fiquem sem trabalho. A responsabilidade recai sobre quem faz essas contratações. São eles os verdadeiros culpados pela decadência que se observa atualmente na ópera, com produções que desvirtuam a essência desta arte. Mas parece que ninguém se opõe a isto, não se faz esta discussão no espaço público. Há quem diga que a ópera está em crise porque os encenadores se tornaram autocratas, o que não é verdade. Nós tomamos decisões procurando ser o mais fiéis possível à obra.
JP: A ópera está em crise?
Allex: A verdadeira essência da ópera reside na capacidade de despertar emoções e oferecer ao público uma experiência que o enriqueça interiormente. No entanto, muitas produções contemporâneas não respeitam este princípio essencial, preferindo provocar choque em vez de cultivar a beleza, mesmo quando os temas são sombrios. Esta tendência tem contribuído para uma crise percetível no mundo da ópera, sobretudo nos países europeus, nos quais uma abordagem focada em provocar e chocar tem vindo a afastar o público das salas de espetáculo. Algumas produções tratam a ópera mais como um meio de autopromoção do que como uma forma de arte digna de respeito. No entanto, existem diretores como Calixto Bieito, que, embora se afastem do tradicional, fazem-no com um profundo entendimento da música e da dramaturgia, criando mundos lógicos que obrigam o público a pensar e a sentir, o que considero válido.
JP: E qual é a sua abordagem?
Allex: Não vejo a ópera como algo sagrado ou intocável. Considero-a uma forma de arte que deve evoluir com os tempos, sem que se perca a sua essência. Os extremos prejudicam a ópera; é sempre necessário encontrar um equilíbrio, algo pelo qual me esforço nos meus trabalhos. Estou sempre em busca da beleza e evito a feiura desnecessária. O meu objetivo é o levar o público numa viagem emocional, transformando a experiência de ver uma ópera em algo que o enriqueça e que, quem sabe, transforme a pessoa pela positiva, qualquer que seja o tema abordado. É maravilhoso sentir a plenitude da emoção numa peça, num concerto ou numa ópera, sair do espetáculo com uma perspetiva renovada, talvez diferente daquela com que entrou, e até mesmo sentir-se transformado como pessoa. Isso, para mim, é o verdadeiro valor da ópera. E quando menciono a feiura, refiro-me a ela no seu sentido mais cru — por exemplo, há óperas em que acontecem assassinatos, o que é intrinsecamente feio. No entanto, a maneira como estas cenas são apresentadas pode fazer toda a diferença. O importante é como se conta a história, como se transmite a mensagem, mesmo em temas desafiadores, e evitando transformar a arte em mero choque visual sem substância. Além disso, enquanto encenador, quero que a obra seja percebida por todos, que seja acessível e que transmita valores universais, com os quais as pessoas se identifiquem.
JP: É isso que está a fazer na encenação da ópera “Felizmente Há Luar!”, de Luís Sttau Monteiro, que estreia a 8 de maio no Teatro Municipal São Luiz?
Allex: Quando aceitei o convite para encenar a ópera “Felizmente Há Luar!”, abordei a obra com a curiosidade e o entusiasmo de quem a descobria pela primeira vez. Estava familiarizado com o texto histórico português que serve de pano de fundo à peça e o contexto em que ela foi escrita – durante a ditadura e antes da Revolução dos Cravos –, mas nunca tinha lido o texto. Li-o sem ideias preconcebidas e enriqueci a interpretação com a experiência acumulada durante os anos em que vivi e trabalhei em Espanha, pelo que a minha visão pode não refletir exatamente o texto original. No entanto, a combinação da música com o texto abre novas dimensões à obra, que foi originalmente concebida para ser lida ou representada, não cantada. Este projeto é uma grande oportunidade de construir algo do zero e isso é um privilégio. Estamos a criar algo único. É uma estreia para mim, mas também para o elenco e o maestro. O facto de o texto ser integralmente em português elimina todas as barreiras linguísticas e faz com que a obra seja acessível a todos.
JP: Como é que tem sido esta primeira experiência de encenar uma ópera em Portugal?
Allex: Tem sido muito entusiasmante! A qualidade vocal do elenco é excecional, e a dedicação de todos é inquestionável. Temos dedicado muitas horas a um trabalho árduo e meticuloso, com o objetivo de apresentar uma ópera que considero ser de grande relevância e atualidade, especialmente neste ano em que se celebram 50 anos de Democracia em Portugal. Este projeto surge também como forma de contrariar a tendência da “intrusão” na ópera, de que falei anteriormente, que tem desviado muitas produções do seu verdadeiro propósito devido à falta de um entendimento musical profundo. Tenho trabalhado no sentido de respeitar o texto e por integrar a música de forma harmoniosa, de modo a enriquecer a obra sem comprometer a sua verdadeira essência. Além disso, a composição musical feita por Alexandre Delgado é de elevadíssima qualidade, o que nos permite explorar uma dimensão tonal e melódica mais contemporânea, que nem sempre está presente neste tipo de óperas. O público vai-se identificar com a familiaridade das melodias, que evocam vários elementos da cultura portuguesa, como o fado, por exemplo. Esta minha estreia como encenador de ópera em Portugal também me tem permitido descobrir o extraordinário talento dos artistas portugueses. A capacidade vocal e interpretativa do elenco é impressionante e merecedora de maior reconhecimento e valorização. Entre nós, criou-se um ambiente de grande cumplicidade e diversão, o que tem potenciado a criatividade e fortalecido os laços entre todos os elementos da equipa. Somos uma pequena família e isso é um elemento crucial para o sucesso do projeto.
JP: O que gostaria de dizer ao público português que vai ver a ópera “Felizmente Há Luar!”?
Allex: Venham sem preconceitos para desfrutar de uma música que é, sublinho, absolutamente maravilhosa. O que vos espera é uma experiência repleta de emoção, o que já é, por si só, valioso. Serão confrontados com uma beleza musical indescritível, e os nossos intérpretes, mais do que simples cantores, dão vida à narrativa de uma forma sublime. Cada um encaixa perfeitamente no seu papel, compondo um elenco irrepreensível. Não há substitutos possíveis; quem foi escolhido para cada personagem, assim deve ser. Eles encarnam seus papéis com tanta autenticidade que se torna impossível imaginá-los de outra forma. Além disso, esta ópera apresenta uma frescura invulgar, cheia de novidade e inovação, por ser uma obra contemporânea que muitos ainda não conhecem. Portanto, é isto: venham experienciar uma ópera repleta de emoção e novidade, uma obra que, tenho a certeza, tocará a todos profundamente.
* Joana Patacas - Assessoria de Comunicação e de Conteúdos
Quer saber mais? Veja abaixo imagens das suas encenações:
"Tristão e Isolda" © Roberto Alcain
"Otelo" © Arnaud Pottier
"Pagliacci " © Alain Hanel
Próximas encenações:
Abril de 2024 - "I Capuleti e i Montecchi" (Bellini), na Opéra Royal de Wallonie, Liège, Bélgica
Junho de 2024 - "Otello" (Verdi), no Teatro dell’Opera di Roma, Itália
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