LA SERVA PADRONA: DA COMMEDIA DELL'ARTE À CRÍTICA SOCIAL

Em 31/08/2023, por André Cunha Leal

Para quem como muitos de nós se habituou a ouvir a ária “stizzoso, mio stizzoso” tantas vezes banalizada, para não dizer assassinada, acaba por alimentar um certo preconceito contra esta obra incontornável da história da ópera. No entanto, depois da produção apresentada no Cistermúsica de há dois anos, graças à interpretação da Carla Caramujo, do Luís Rodrigues e do João Merino, a que se juntou a orquestra La Nave Va dirigida pelo António Carrilho, com a encenação do Carlos Antunes, a ópera parece ter ganhado toda uma nova vida. 

Nessa produção pudemos perceber como não há uma nota de música má neste intermezzo, como o texto é brilhantemente cómico e crítico, e do porquê a história da música ter ficado a dever tanto a esta obra. É por esse motivo que a Banda de Alcobaça, em parceria com o Município de Óbidos, e contando com a Direção Artística e Apoio à Produção da ProART, fazem surgir de novo no Festival de Ópera de Óbidos, precisamente com o mesmo elenco que nos fez redescobrir está obra-prima.

Composta por Giovanni Battista Pergolesi em 1733, "La Serva Padrona" foi apresentada como um surpreendente intermezzo para a ópera "Il prigionier superbo". Desde a sua estreia no Teatro San Bartolomeo, em Nápoles, que esta obra, pensada para ser um elemento secundário do espetáculo, foi sempre crescendo em popularidade de tal forma que ofuscou a ópera principal que a albergava.

O êxito de "La Serva Padrona" pode ser explicado pela fusão prodigiosa entre inovação artística e ressonância social. A sua simplicidade narrativa, contraposta às óperas mais densas da época, ofereceu ao público uma história com a qual se podia identificar, pontuada por melodias vivazes e ritmos contagiante que divergiam significativamente das composições tradicionais. Mas não foi apenas o carácter musical que a catapultou para o sucesso. 

O humor intrínseco e a maneira como desafiou abertamente as convenções sociais, invertendo papéis hierárquicos tradicionais, tornou-a particularmente atraente numa época de descontentamento social latente. E, ainda que profundamente italiana na sua essência, os temas universais de aspiração social, dinâmicas de poder e sedução asseguraram a sua aclamação além-fronteiras.

No cerne da história, encontramos Serpina, a perspicaz criada (serva) que, com muita astúcia e a ajuda preciosa do seu fiel Vespone, manipula o Uberto (o patrão), ao ponto dele admitir que talvez a ame. Serpina consegue assim casar-se com Uberto, tornando-se ela na patroa (padrona) da casa.Numa época em que as mulheres eram frequentemente marginalizadas, a história de Serpina ressoa como uma chamada à ação. Mais do que uma simples serva, Serpina é um símbolo de vontade, manipulando as convenções sociais e desafiando o status quo. Por outro lado, Uberto é retratado de forma caricata e facilmente manipulável, desafiando o arquétipo masculino da época.

Por tudo isto, não é de todo desprovido pensar-se em commedia dell'arte quando ouvimos "La Serva Padrona", sobretudo se atendermos à utilização de personagens estereotipados e situações caricatas. A perspicácia de Serpina remete-nos a personagens como Colombina, enquanto Uberto tem traços do Velho Pantalone. Ambos exploram o humor para satirizar as convenções sociais.

Em resumo, "La Serva Padrona" não foi apenas uma manifestação da genialidade de Pergolesi, mas também um reflexo agudo das sensibilidades e anseios da sua época.

Esta ópera será apresentada no Festival de Ópera de Óbidos, que ocorre entre os dias 8 e 17 de setembro. Saiba mais na página Programação, no site da ProART, ou através do site oficial do Festival de Ópera de Óbidos.

Veja também abaixo o depoimento da soprano Carla Caramujo, que interpretará Serpina: