Por Joana Patacas*, em 18 de abril de 2024
Osvaldo Ferreira destaca-se como um dos maiores nomes na direção e condução de orquestras, tanto em Portugal como internacionalmente. Iniciou a sua carreira musical como violinista, mas foi nos Estados Unidos que descobriu a sua verdadeira vocação: a regência orquestral.
Desde então, tem-se dedicado incessantemente ao aperfeiçoamento desta arte, sendo reconhecido pela sua técnica exímia e um profundo respeito pela música.
“Tal como nós somos todos diferentes e coexistimos em sociedade, o mesmo acontece com os instrumentos numa orquestra: eles coexistem e fundem-se de uma forma extraordinária. É a conjugação de todos os instrumentos, de todas as cores sonoras e mentalidades, que produz algo tão belo.” (Osvaldo Ferreira, 2024)
Formado sob orientação de alguns dos mais conceituados maestros do século XX, como Victor Yampolsky, Ilya Mussin e Claudio Abbado, tem dirigido orquestras de renome mundial, incluindo as orquestras de São Petersburgo e do Luxemburgo, a Sinfónica de Nuremberga e a Bühnen-Halle alemã, mas também a Orquestra Gulbenkian, em Lisboa. O seu currículo também inclui papéis como diretor artístico e musical em várias instituições, entre elas a Orquestra Sinfónica do Paraná e a Orquestra do Algarve.
A Orquestra Filarmónica Portuguesa, fundada em 2016 com o concertino Augusto Trindade, é o projeto da vida de Osvaldo Ferreira, que sob a sua direção artística se tem consolidado como uma referência. Este sucesso decorre dos altos padrões de exigência que estabeleceu desde o início, atraindo músicos de elevada competência técnica e artística. A iniciativa “Sounds of Change”, que envolve parcerias com a Alemanha, Espanha, Eslovénia e Sérvia, reflete uma ambição internacional, contando também com o apoio do programa Europa Criativa da União Europeia e da Direção-Geral das Artes.
“A Orquestra Académica Filarmónica Portuguesa surge como «rosto de transformação» de uma região que «necessita de investimento na cultura». Porque continua a haver «lugar e espaço para uma orquestra a nível nacional». E a existir alguém, como Osvaldo Ferreira, que aposta em quem parecia ter como único destino o esquecimento.” in Notícias Magazine, 2019
Adicionalmente, empresta a sua reconhecida maestria à direção artística e musical da nova ópera “Felizmente Há Luar!”, baseada na obra de Luís de Sttau Monteiro. Esta produção, que estreia a 8 de maio no Teatro São Luiz, em Lisboa, é uma encomenda da Filarmónica para marcar o cinquentenário do 25 de Abril. Com música e libretto de Alexandre Delgado, encenação de Allex Aguilera e direção de arte de Nuno Esteves “Blue”, este espetáculo vai percorrer várias cidades do país, prometendo enriquecer o património cultural português e incitar a uma reflexão sobre os valores da democracia e da liberdade.
Nesta entrevista à ProART, conduzida por Joana Patacas (JP), convidamo-lo a explorar a trajetória única de Osvaldo Ferreira, que nos oferece reflexões profundas sobre a sua carreira, a sua visão artística e os desafios enfrentados pelo meio musical português.
JP: Quais é que são as suas primeiras memórias relacionadas com a música?
Osvaldo: Curiosamente, as minhas primeiras memórias não estão ligadas à escola ou a uma aprendizagem formal, como acontece hoje em dia com a maior parte das crianças, incluindo os meus próprios filhos, que tiveram formação musical desde cedo. No meu caso, a música chegava-me, principalmente, através da minha mãe, que gostava muito de cantar e cantava bem. Também me recordo de uma tia que, quando era jovem, se mudou para o Rio de Janeiro para se juntar a uma ordem religiosa, onde aprendeu música e a tocar órgão. Mais tarde, ao regressar a Portugal, formou um coro na igreja local e começou a ensinar música às crianças. Creio que a minha mãe aprendeu um pouco com ela. O meu pai também tinha um bom ouvido musical e gostava de cantar.
JP: Nasceu em 1964, em Paços de Brandão, antes do 25 de Abril. Que memória tem desses tempos?
Osvaldo: Tinha 10 anos quando se deu o 25 de Abril. Lembro-me perfeitamente de aqui no Norte estar um dia nublado, com algum nevoeiro. Quando cheguei a casa, a minha mãe disse-me que tinha ouvido na rádio que estava a acontecer uma revolução Na verdade, muitas pessoas no dia-a-dia nem se aperceberam de qualquer movimento revolucionário; só quem estava em Lisboa é que teve uma noção mais real dos acontecimentos. O resto do país, com revolução ou sem ela, continuou igual. Naquela época, a maioria das pessoas vivia em zonas predominantemente rurais e a educação era muito humilde. Até os arredores de Lisboa e Porto eram rurais e prevalecia um tipo de mentalidade assente na economia de subsistência e de pequena propriedade. Toda a gente plantava qualquer coisa e tinha animais. Houve momentos complicados. Praticamente todos tínhamos familiares que estavam a combater em África – o meu irmão mais velho esteve em Moçambique – e quase todos os meses se enterravam militares.
JP: Como é que era o panorama musical nessa época?
Osvaldo: Em Paços de Brandão existiam duas tunas que durante muitos anos rivalizaram uma com a outra – era uma forma de se fortalecerem através dessa competição. Nos últimos anos do Antigo Regime, no entanto, ambas acabaram por desaparecer, como quase tudo o que estava relacionado com as artes em Portugal. Existiam muitos cineteatros, mas foram transformados em verdadeiras salas de propaganda da cultura norte-americana, pois os norte-americanos compreenderam que conseguiam “colonizar” o mundo através da cultura pop e do cinema. E esta também foi a realidade da minha geração, que após o 25 de Abril passou a ouvir na rádio os mais diversos estilos musicais, desde o rock ao hip hop. Até então, em Portugal, não se ouvia quase nada relativo aos movimentos musicais pop, como os Beatles, os Rolling Stones ou outras bandas e diferentes estilos de música e movimentos artísticos, políticos e sociais. Chegou tudo com uma década de atraso. A revolução apanhou uma geração que se sentia miserável e sem oportunidades, e a verdade é que esse movimento de liberdade levou a que muitas coletividades acreditassem novamente num futuro. Voltou a haver esperança, sobretudo com o fim da guerra colonial.
JP: E foi nesse contexto que começou a aprender música na escola da Tuna Musical Brandoense?
Osvaldo: Sim. No Norte de Portugal o associativismo sempre teve muita força, e, depois da revolução, as coletividades começaram a incentivar o ensino das artes em geral, e da música em particular. Comecei como violinista na escola da Tuna, que pouco tempo depois um grupo de visionários converteu numa academia oficial. Aliás, aqui ao lado, em Vila da Feira, já existia um precedente antigo, pois, em 1955, Gilberta Paiva fundou a Academia de Santa Maria, a primeira escola de música fora dos conservatórios de Porto e Lisboa. Mais tarde, em 1960, fundou e dirigiu o Conservatório de Aveiro. Já havia, portanto, uma semente de efervescência musical na região. Muitas bandas e tunas musicais começavam a emergir, não só em Paços de Brandão, mas também noutras localidades à volta do Porto.
JP: A seguir, foi para o Conservatório do Porto. Quando é que decidiu que o seu futuro profissional passava pela música?
Osvaldo: Sim, acabei por me formar no Conservatório do Porto, mas até aos 19 anos não estava muito seguro de querer ser músico. Para os padrões atuais, comecei tarde a aprender violino – tinha 11 anos. Por um lado, a música não era o meu único apelo: cheguei mesmo a matricular-me em Filosofia na Universidade e era um bom jogador de futebol. Por outro, havia o meu sentido crítico em relação a mim próprio. Questionava-me se não teria começado tarde demais na música para ser um bom profissional. No entanto, uma sucessão de pequenos eventos mostrou-me que eu tinha potencial. Por exemplo, a criação da Orquestra Portuguesa da Juventude e eu ter ficado em primeiro lugar, e ter sido o primeiro violinista português a ser integrado nas escolas da Orquestra da União Europeia. Essas experiências revelaram que eu realmente tinha possibilidades na música. Mais tarde, entrei na Orquestra do Porto, já depois da reforma de 1989 pelo maestro inglês Jan Latham-Koenig e a "Regie Sinfónia Cooperativa", primeiro como estagiário e depois como efetivo.
JP: Que tipo de desafios enfrentou no início da sua carreira?
Osvaldo: Houve uma altura em que me senti – e ainda sinto – injustiçado no processo das bolsas de estudo. Não consegui a bolsa na idade em que queria, o que foi um revés. Apesar de ter entrado na Orquestra do Porto, sentia que estava um pouco atrasado em relação ao normal. No entanto, não desisti. Quando a oportunidade se apresentou novamente — na altura as bolsas eram atribuídas de três em três anos ou de quatro em quatro anos pela Academia de Estado da Cultura — lutei e consegui. Isso permitiu-me ir estudar nos Estados Unidos.
JP: Foi para a School of Music da Northwestern University, em Chicago, já com o objetivo de estudar direção de orquestra?
Osvaldo: Não, inicialmente fui para fazer a pós-graduação em violino. No entanto, o contacto com Victor Yampolsky, que mais tarde também foi professor da Joana [Carneiro], do Martim [Sousa Tavares] e de outros, foi decisivo. Eu abri as portas para eles, mas foi só após frequentar as aulas de direção de orquestra que comecei a desenvolver uma paixão por essa área. Eu participava na orquestra da universidade não só porque queria, mas porque aquelas aulas me permitiam aprender e ver a música de uma perspetiva completamente diferente. Era uma experiência enriquecedora, estar ali a ver sinfonias e reportórios serem explorados de maneiras que nunca tinha considerado antes.
JP: Foi um ponto de viragem?
Osvaldo: De certa forma sim, porque nunca mais pensei numa sinfonia apenas do ponto de vista do violinista / instrumentista; essa fase terminou para mim, e a partir desse momento a decisão estava tomada, eu iria ser diretor de orquestra, empreendedor, produtor e manager. Uma orquestra é um “universo” e temos que ser capazes de coordenar tudo com muita eficácia. Ainda há uns dias, estava a ouvir um diálogo de Gustavo Dudamel, em que ele questiona as crianças na Venezuela sobre o que um violino e um trombone têm em comum. A resposta é que, isoladamente, eles não têm nada em comum. Mas tal como nós somos todos diferentes e coexistimos em sociedade, o mesmo acontece com os instrumentos numa orquestra: eles coexistem e fundem-se de uma forma extraordinária. É a conjugação de todos os instrumentos, de todas as cores sonoras e mentalidades, que produz algo tão belo.
JP: Quando é que decide iniciar os seus estudos em direção de orquestra?
Osvaldo: Quando regressei de Chicago, voltei para a Orquestra do Porto, que naquela altura estava sob a direção do maestro Manuel Ivo Cruz, que tinha substituído o Jan Latham-Koenig. Conversávamos muito, e numa dessas conversas, comentei que gostava muito de direção de orquestra. Ainda tinha um ano da minha bolsa por gastar e ele disse-me: "Osvaldo vai já! Vai estudar. Eu já não sou novo, e o Álvaro [Cassuto] também não”. Insistia que não havia muitos na nossa área e que eu devia prosseguir com a minha aprendizagem em direção de orquestra. "Não sejas mais um que pega na batuta, assim, sem mais nem menos; vai estudar!". E assim fiz. Deixei a Orquestra do Porto e voltei para os Estados Unidos por mais dois anos – no início o plano era ficar apenas mais um ano, mas ganhei uma bolsa de mérito da Universidade, e estendi a minha estadia, completando o mestrado em condução de orquestra.
JP: E depois disso foi para São Petersburgo. Como é que foi essa experiência?
Osvaldo: Sim. Na altura, quando pensava voltar para a Orquestra do Porto e retomar as minhas aulas como professor de música, fui incentivado a continuar os meus estudos. Acabei por enviar os meus vídeos para o Conservatório de São Petersburgo, e isso envolveu uma história engraçada: na Orquestra do Porto, tinha colegas russos e um deles, ao ouvir que eu gostaria de estudar com o maestro Ilya Mussin, que na altura era muito velhinho mas ainda dava aulas, mencionou que a mãe era diretora da biblioteca do Conservatório. Isso facilitou bastante o meu processo de candidatura. Enviei um vídeo e, duas semanas depois, recebi a notícia de que tinha sido aceite para a pós-graduação. A classe daquele ano foi extraordinária e ficámos todos muito amigos: Tugan Sokhiev, que foi diretor do Bolshoi; Teodor Currentzis, que foi diretor da SWR Symphonieorchester; Stuart Bedford da Ópera de Glasgow, e Sian Edwards, que está na Royal Academy, entre outros. Fomos a última geração de alunos de Ilya Mussin. Foi uma experiência muito recompensadora e, em 1999, fui laureado no Concurso Sergei Prokofiev. Mas o tempo que estive na Rússia foi difícil. Eu tinha muito pouco dinheiro e as condições não eram as melhores. Além disso, não estava com bolsa. Fui eu que suportei todos os custos. O dinheiro que eu ganhava nessa fase a dirigir orquestras já estava todo destinado à minha formação. No fim deste período de quatro anos pensei que estava na altura de concluir mais esta etapa e regressar a Portugal. Entretanto, fui a Chicago para rever alguns amigos. Nessa altura, a Maria João Pires estava na cidade para dar um concerto. Em conversa, diz-me ela, como se fosse a coisa mais natural do mundo: “Ah, tu devias passar um tempo agora com o Abbado.” E eu respondi: “Claro, Maria João, é só eu chegar lá e o Abbado recebe-me no dia seguinte”.
JP: E recebeu?
Osvaldo: O certo é que a Maria João falou com ele e depois disse-me que ele tinha sugerido que eu fosse ter com ele. Pesquisei e vi que o Claudio Abbado estava na Orquestra Filarmónica de Berlim. Comprei um bilhete de avião e fui. Quando lá cheguei, a primeira coisa que o assistente dele me disse foi que o Abbado não sabia quem eu era. Pedi desculpa, expliquei-lhe a situação e fui-me embora. Mesmo antes de atravessar a porta da saída, viro-me momentaneamente para trás e vejo-o a acenar lá do fundo e a gesticular para que eu voltasse para trás. Se eu não tivesse parado aqueles dois seguidos e olhado para trás, o que aconteceu a seguir nunca teria acontecido. Lá fui e o Abbado conversou comigo durante cerca de meia hora, sobre Saramago, que tinha acabado de ganhar o Prémio Nobel, sobre a Rússia, onde eu tinha estado, e a dada altura percebi que ele me estava a entrevistar. Disse-me que não tinha como me pagar, mas que eu o podia acompanhar, e eu nem queria acreditar que ele me estava a aceitar. Eventualmente, a Fundação Gulbenkian acabou por me atribuir uma bolsa – que eu já tinha pedido inúmeras vezes, sem sucesso. Na altura, o diretor-adjunto do Serviço de Música da Fundação era o falecido e querido Carlos Ponte Leça, que considerou que aprender com o Claudio Abbado era uma oportunidade única e extraordinária, e lá obtive o financiamento. O que era para ser um ano de estudo em Chicago transformou-se em sete anos de aprendizagens muito diferentes. E durante todo esse tempo estive cem por cento concentrado em aprender.
JP: Em Portugal, entre outras coisas, foi diretor artístico da Orquestra do Algarve. Como é que foi esta passagem por uma orquestra regional?
Osvaldo: A Orquestra do Algarve foi fundada pelo maestro Álvaro Cassuto, que sempre respeitou o meu trabalho e tinha um certo carinho por mim, reconhecendo o meu esforço e dedicação. Ele próprio sugeriu que eu o substituísse quando decidiu deixar a orquestra. Ainda coincidi como maestro assistente nos últimos meses, entre março e junho daquele ano, antes de ele partir para a Orquestra Metropolitana. Tem sido uma excelente escola para muitos músicos e maestros, e é uma verdadeira pena que outras orquestras regionais não tenham seguido o mesmo modelo. Foi uma experiência muito enriquecedora, mas também desafiante, pois eu sempre defendi que o modelo das orquestras regionais precisa de mudança e diversificação, principalmente devido à falta de verbas. Apesar dos meus esforços e das propostas que apresentei, inclusive em reuniões com figuras como Mário Vieira de Carvalho, quando era secretário de Estado da Cultura, muitas das minhas ideias não foram implementadas devido à instabilidade das políticas. Cada vez que um governo cai, fica tudo pelo caminho e é preciso começar de novo. É frustrante ver que em Portugal há uma certa resistência a mudanças, mesmo quando as coisas não funcionam.
JP: E qual era a sua visão para a Orquestra do Algarve?
Osvaldo: A minha ambição era transformá-la na terceira sinfónica do país, ao lado de Lisboa e Porto. A região continua a ter todas as condições para isso: uma localização estratégica que atrai turistas e estrangeiros residentes amantes da música, um público interessado e infraestruturas adequadas, como os Teatros de Faro e Portimão, mas também outros auditórios como o de Lagoa e o de Loulé. Existiam, e existem, todas as condições para que a Orquestra do Algarve pudesse crescer e destacar-se no panorama musical nacional. Mas a minha experiência ao tentar implementar esta visão reflete as dificuldades que existem em introduzir mudanças significativas nas instituições culturais em Portugal. Por isso, às vezes, penso que é melhor começar algo novo e deixar o antigo morrer naturalmente.
JP: Foi por essa razão que decidiu ser membro fundador e diretor artístico da Orquestra Filarmónica Portuguesa?
Osvaldo: Sim, a ideia de fundar a Filarmónica começou quando eu ainda estava no Algarve. Já naquela época, queríamos criar um projeto novo que nos permitisse apostar numa nova geração de músicos portugueses brilhantes, ao nível dos melhores músicos internacionais. Recordo-me de conversar sobre isso com o Laurence Foster, que era um grande apoiante do que eu fazia no Algarve. Ele compreendia a minha vontade de mudar o panorama para os músicos portugueses e incentivava isso. Dizia-me que não fazia sentido músicos talentosos tocarem em orquestras lá fora e não terem lugar em orquestras como a da Gulbenkian. Ele estava certo, esses jovens são o futuro, e era para isso que o país tinha lutado — para criar esta geração capaz e talentosa. No entanto, quando estava prestes a iniciar esse processo em Portugal, em 2008 recebi um convite do Brasil para a Oficina de Música de Curitiba. Aceitei e acabei por ficar fora do país durante mais sete anos.
JP: Mas entretanto regressou. Sentiu que era então a altura certa para finalmente concretizar o seu projeto?
Osvaldo: A determinada altura senti que devia regressar a Portugal para realizar o projeto da minha vida. E pensei, "pronto, se falhar, falhei, mas pelo menos tentei". No início, começámos contra tudo e contra todos. Mesmo quando as coisas corriam bem, havia quem insistisse que corriam mal. Mesmo quando a orquestra tocava maravilhosamente, diziam que tocávamos mal. Havia sempre previsões de que falharíamos em breve, mas a cada ano que passava, duplicávamos o número de concertos e o público gostava cada vez mais de nós. Ainda hoje continuamos a receber convites para tocar dentro e fora de Portugal. Eventualmente, as coisas acalmaram. Por vezes fomos injustiçados, mas também recebemos ajuda de quem realmente importava. Curiosamente, quem mais nos criticava era o próprio tecido musical, que deveria nos apoiar. É irónico ver pessoas em orquestras estatais, com empregos garantidos, resistir à emergência de novos projetos. De futuro, os alunos que se formam nas suas classes vão precisar de oportunidades de emprego. Tive que explicar várias vezes que a Orquestra cria uma concorrência saudável. Por exemplo, por cada concerto que há para mil pessoas na Casa da Música, há milhares de outras pessoas na área do Grande Porto que não têm uma orquestra para ouvir. Felizmente, criámos mais uma opção para que mais pessoas possam desfrutar de música ao vivo. Estamos a criar oportunidades para solistas, maestros e compositores. Já encomendámos obras a catorze compositores diferentes, incluindo óperas. Jovens solistas emergentes, cantores, pianistas, violinistas, clarinetistas, flautistas, que começaram connosco, estão agora a tocar em grandes orquestras em Londres, Paris, Berlim e Munique. Fazemos a diferença. Agora o nosso objetivo é passar de cachets a salários. Quando os músicos tocam connosco nos concertos da orquestra, são pagos exatamente como os outros, mas queremos poder dar-lhes estrutura e estabilidade.
JP: Imagino que toda a experiência acumulada em gestão de orquestra durante a sua carreira tenha contribuído para uma gestão otimizada deste projeto.
Osvaldo: Na minha carreira, o lado do management sempre foi muito importante. Ninguém consegue fazer uma carreira sem uma boa capacidade de gestão, seja a dirigir uma orquestra, um festival ou qualquer outra coisa. Hoje, as pessoas perguntam-me como consegui, em menos de sete anos, elevar a Orquestra Filarmónica Portuguesa ao nível em que está. E, sinceramente, teve muito pouco a ver com a análise de uma partitura; com todo o respeito, isto é completamente diferente. Colocar uma orquestra de pé é um outro ofício, envolve o lado empresarial. É preciso ter uma estratégia, uma visão, oportunidades e muitos contactos. Ajudou muito ter estado em muitos países e confesso que aprendi com os melhores. Ao longo da minha carreira, tive de desempenhar muitas funções. Sou muito disciplinado no meu trabalho, tenho objetivos traçados e crio estratégias com muito detalhe e paciência, pelo que acredito que tenho uma capacidade de trabalho muito elevada e sou multifuncional.
JP: Considera que ainda há muito caminho a percorrer no que se refere à gestão das orquestras estatais?
Osvaldo: Sim, definitivamente. Defendo que este tipo de instituições públicas deveria ter capacidade e vocação para desenvolver e exportar talento para filarmónicas renomadas como as de Berlim ou Viena. Nem todos os instrumentistas alcançariam esse nível, mas é importante dar-lhes oportunidades. No âmbito da cultura, os organismos públicos devem estar ao serviço do nosso património cultural, criando espetáculos e encomendando obras que tenham como ponto de partida a nossa história e literatura. O público continuará a apreciar as grandes óperas, mas devemos criar coisas novas com regularidade, pois se lhe apresentarmos alternativas ele habitua-se a ver outro tipo de espetáculos. As instituições de estado, como o Teatro Nacional São Carlos e outras, têm dificuldade em trabalhar a longo prazo, uma vez que está tudo indexado ao orçamento de estado e a uma navegação à vista. Como podem trabalhar adequadamente sob tais condições, e com orçamentos pequenos? Foi por essa razão que criei uma orquestra independente, onde apesar de também depender de financiamento da DGArtes, posso planear a longo prazo sem restrições. Podemos procurar patrocínios e apresentar e concretizar ideias com todo o tipo de parcerias público-privadas. É isto que nos permite trabalhar de uma forma diferente e mais independente. Aliás, esse é o modelo que seguem as novas orquestras europeias.
JP: Já apresentou às entidades públicas a sua abordagem?
Osvaldo: Sim. Em tudo que me foi pedido opinião e onde eu pude dar o meu contributo. Já trabalhei com muitas entidades ligadas ao Estado e dei sempre conta do recado, portanto, sei do que falo e conheço os reais problemas das orquestras em Portugal, como poucas pessoas. Já mostrei como as coisas podem ser feitas de maneira diferente, de forma benéfica para todos, sem que isso implique custos adicionais. Estou cansado de repetir isso e ver que ninguém tem vontade de mudar. Há duas abordagens possíveis: simplesmente criticar por criticar, ou apresentar soluções, que foi o que eu fiz ao longo do tempo. No entanto, há resistência. A nova legislação sobre orquestras regionais é reflexo do que eu acabei de dizer, pois trouxe "mais do mesmo". É como se estivessem a abrir a mesma janela todos os dias à espera de ver uma paisagem diferente. Nós, músicos, queremos fazer melhor. Procuramos iniciativas dinâmicas e inovadoras onde todos se sintam bem e queiram estar envolvidos. Queremos uma energia renovada a cada novo programa e a cada novo projeto. É isso que estamos a fazer na Orquestra Filarmónica Portuguesa.
JP: Foi o modelo diferenciado da Orquestra Filarmónica Portuguesa que criou condições para a adaptação operística da obra literária “Felizmente Há Luar!”, que vai estrear a 8 de maio no Teatro São Luiz sob a sua direção artística e musical?
Osvaldo: Absolutamente. Esta é uma encomenda nossa para assinalar a comemoração dos 50 anos do 25 de Abril de 1974. A ópera é baseada no livro homónimo do grande autor português Luís de Sttau Monteiro, uma proposta do compositor Alexandre Delgado, que é o autor da música e do libretto. A encenação ficou a cargo do Allex Aguilera e temos um elenco de cantores nacionais de grande talento. Os ensaios estão a correr maravilhosamente. Esta ópera é a prova de que os grandes projetos não surgem por acaso. Ela vai fazer parte do nosso património cultural, e ninguém nos pode tirar isso. Daqui a anos, as pessoas vão olhar para trás e ver que produzimos algo belo, com muita qualidade e que reflete a nossa história e os nossos valores. Acho que ainda falta muito disso em Portugal, mas já começamos a ver mais iniciativas graças a esta nova geração que não se sente tão limitada como antes. Por isso, precisamos continuar a investir e a arriscar, sem medo.
JP: Como é que está a ser o seu envolvimento nesta produção?
Osvaldo: Ah, essa é a parte mais difícil, sabe? Como é que posso falar de forma desprendida sobre algo que me é tão querido? Primeiro, porque a obra é uma encomenda nossa. Depois, gostei genuinamente da música desde a primeira vez que a ouvi. Tentando ser o mais imparcial possível, acho que o trabalho do Alexandre está muito criativo, tanto a nível da composição como do libretto. A orquestração está quase finalizada, embora ainda nos falte ajustar alguns detalhes. As árias e os temas já foram ensaiados e todos gostam muito das músicas. O Alexandre escreveu cada parte a pensar na voz que a vai interpretar, o que é maravilhoso. É como se estivéssemos no século XIX, quando Puccini escrevia especificamente para determinados cantores. A ópera está a ser agora encenada pelo Allex Aguilera, mas espero que no futuro seja dirigida por muitos outros encenadores e tocada por várias orquestras. Isso deixar-nos-ia, a mim e ao Alexandre, muito felizes.
JP: Por fim, com uma carreira tão diversificada e completa, gostaria de lhe perguntar como é que consegue equilibrar o lado profissional com o pessoal?
Osvaldo: Com uma estrutura como a da Orquestra Filarmónica Portuguesa, que movimenta perto de um milhão de euros por ano, não aspiro a ser o homem dos sete instrumentos. Há muito tempo que conto com uma equipa e colaboradores externos, em áreas como a contabilidade e a gestão de concursos. São pessoas em quem confio plenamente. Além disso, continuo a dedicar muito tempo ao estudo, que considero sagrado, e a ser pai de duas crianças pequenas. Quero estar presente, participar na vida delas e ajudá-las com os trabalhos de casa. Para mim, isso é crucial, tão ou mais importante quanto dirigir. Fiz muitas concessões por causa da família, que para mim é extremamente importante, ao ponto de recusar convites para dirigir internacionalmente. Não quero estar longe. Prefiro focar-me em melhorar cada vez mais o projeto da Orquestra e dedicar-me à minha família. Por vezes, as fronteiras entre o pessoal e o profissional misturam-se, o que pode ser desafiador, pois numa orquestra não há horários fixos. Não temos fins de semana ou feriados, porque é nesses dias que trabalhamos. É uma gestão complicada e inquietante por vezes, mas também vou aprendendo e tentando melhorar a cada dia. A minha última palavra vai para a Carolina, a minha esposa, que me tem apoiado incansavelmente e que agora também trabalha comigo no projeto. Excelente violinista e um ser humano maravilhoso. Esta tem sido a “melhor sinfonia” da minha vida - A Minha Família!
Fotografia de perfil de Osvaldo Ferreira por ©️Frederico Martins
* Joana Patacas - Assessoria de Comunicação e de Conteúdos
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