ProART Opinião: Pavarotti Eterno - o grande tenor que completaria, nesta semana, 88 anos.

Em 13/10/2023 - Por André Cunha Leal*

Lisboa - Luciano Pavarotti foi uma das maiores estrelas da ópera e da chamada música erudita, tendo sabido romper as fronteiras da sua arte, chegando a tudo e a todos. Um tenor que era acusado de não saber representar e que, no entanto, levou a ópera até milhões.

Para alguns, o primeiro contacto com Pavarotti pode ter ocorrido através de uma ópera no Met ou no Covent Garden; para outros, poderá ter sido numa noite em Hyde Park ou na companhia de Domingo e Carreras nas Termas de Caracala. Para outros ainda, terá sido nos sucessivos Pavarotti & Friends ou até num estádio de futebol onde a sua voz acompanhou tantos momentos de glória. Para todos os efeitos, independentemente do momento ou do evento que lhe possam estar associados, a voz tenor de Luciano Pavarotti é, sem dúvida, a voz de tenor mais reconhecida em todo o mundo, mesmo nos dias de hoje.

Se dúvidas que houvessem sobre o magnetismo deste cantor, basta recordar noites como aquela em Hyde Park, em 1991, em que em pleno concerto, debaixo da habitual chuva londrina, o Príncipe e a Princesa de Gales ficaram encharcados quando a estrela sugeriu que fechassem o seu guarda-chuva porque as pessoas atrás deles não conseguiam ver. E quando o tenor mais conhecido do mundo atingiu a sua nota no final de 'Nessun dorma', 100.000 pessoas aplaudiram-no debaixo de chuva. Isto não é de menos! Segundo registos dessa noite, durante esse concerto, foram tratadas 193 pessoas que alegadamente sofriam de hipotermia.

Claro que houve logo na altura quem desdenhasse de tal feito – queixas de que Luciano Pavarotti se havia "vendido", de que o grande homem estava mais interessado em dinheiro do que na arte e de que esses concertos só aconteciam porque Pavarotti já estava no final da carreira. Mas não foi essa a sensação para quem viu através da televisão aquele concerto chuvoso em Hyde Park no mês de julho de 1991.

As árias de Tosca, Turandot e Luisa Miller soavam tão grandiosas como sempre, mas nestes concertos a ternura também estava lá, assim como aquele notável dom para a intimidade. Quando chegava às suas queridas canções italianas como ‘O Sole Mio’ e ‘Torna a Surriento’ ficava aquela sensação de que ele estava a cantar para si e apenas para si, e que nós estávamos a partilhar de um momento único com o cantor.

Mas onde estava a traição ao cantar num parque público? Olhando para trás, tenores como o sueco Jussi Björling e o irlandês John McCormack, ja tinham abandonado o teatro para atuar em arenas desportivas e salões públicos para audiências que não seriam vistas numa casa de ópera. Pavarotti estava assim a fazer o que os tenores italianos sempre fizeram: atuar para o público, mas agora para uma noção mais vasta de público.

Pavarotti era tudo o que se supunha que um tenor italiano fosse segundo os estereótipos Hollywoodescos da época: ele comia montanhas de massa antes e depois de uma atuação, e nunca viajava sem panelas e azeite. Ele deu concertos de caridade, fundou um concurso de canto. E fugiu com uma mulher com metade da sua idade e foi condenado por evasão fiscal. Em certo sentido, era como se a sua carreira e a sua vida fosse toda sobre interpretar um papel, um que ele tinha aperfeiçoado até ser coroado como o tenor mais famoso do mundo.

As circunstâncias modestas do seu nascimento em Modena, em 1935, sendo filho de uma mãe que trabalhava numa fábrica de tabaco e de um pai que era padeiro, foram transformadas numa história que nos apresenta o jovem Luciano como um rapaz do campo, louco por futebol, a quem um dia saiu a sorte grande ao descobrir a sua voz. 

Contudo, este era um jovem que inicialmente se formou como professor. Quando finalmente começou a ponderar sobre o canto, aconselhado pela sua amiga Mirella Freni e também pelo seu pai, com quem cantava todos os domingos na Igreja em Modena, foi ter aulas aulas com Ettore Campogalliani em Mântua, que, no seu tempo, já tinha trabalhado com Renata Tebaldi, Carlo Bergonzi, Renata Scotto e a própria Freni.

De forma simplista diz-se que a voz notável que fez de Pavarotti o que ele é, estava "simplesmente lá", que era uma “Natureza”. Mas a verdade é que foi Campogalliani quem ensinou o jovem cantor a usar o seu instrumento, e a dominar a chamada “passagem”, que lhe permitia ligar a voz à região aguda e que está no cerne da arte do tenor italiano. A voz era indubitavelmente única, mas foi a técnica que ajudou a mantê-la tão bem.

Depois, foi o americano Herbert Breslin, um agente de artistas com um talento transatlântico para as relações públicas, que deu ao "rapaz do campo que se fez" o seu polimento final após Pavarotti ter conquistado o Met em Nova Iorque com nove dó agudos sem esforço aparente em A Filha do Regimento de Donizetti, em fevereiro de 1971. E foi Breslin quem elevou os cachês de Pavarotti à estratosfera, chegando à quantia de 100.000 dólares por atuação.

A verdade é que o próprio cantor já tinha demonstrado saber gerir a sua carreira. Há quem goste de dar a entender que foi um golpe de sorte que levou o Covent Garden a chamá-lo para cantar Rodolfo numa produção de "La Bohème" de Puccini em 1963, substituindo Giuseppe di Stefano. Como se Pavarotti se tivesse transformado numa estrela da ópera da noite para o dia. O detalhe é um pouco mais prosaico. Tendo ouvido Pavarotti a cantar no ano anterior com a Dublin Grand Opera Society, a Royal Opera House tinha contratado o jovem tenor como “cover”, prometendo-lhe uma oportunidade de interpretar Rodolfo no palco no final da temporada. A sua estreia estava portanto planeada; simplesmente aconteceu mais cedo do que o esperado quando di Stefano adoeceu.

A imagem de Pavarotti como um ingénuo - a ponto de ter confessado que lia partituras com dificuldade e que confiava "no seu ouvido" e na sua própria forma rudimentar de anotação para aprender uma obra musical - desmentia um aguçado sentido para os negócios. Ele e a sua primeira mulher, Adua Veroni, chegaram a gerir uma agência de artistas extremamente bem-sucedida chamada Stage Door Opera Management e, seguindo os passos bem marcados de outras celebridades, deu o seu nome a uma água de colónia. 

Seria aquele, porventura, o perfume do omnipresente lenço branco com o qual ele enxugava a testa durante os concertos? Aqui havia outro papel a ser desempenhado. Com a sua camisa de colarinho generoso, a gravata branca e solta e a sua casaca enorme, Pavarotti em concerto parecia uma paródia do cantor de concertos do século XIX.

Em palco, Pavarotti não seria dos melhores atores. O ex-diretor da Royal Opera House, Jeremy Isaacs, chegou a dizer que o tenor "não sabia representar nem por um tostão". Mas a voz... era aí que estava tudo. Que Mimì poderia resistir à sedução de uma voz tão generosa como aquela ao cantar "Che gelida manina"? A forma como no papel de Nemorino em "O Elixir do Amor" de Donizetti, consegue aquela doce tristeza em “Una furtiva lagrima", mesmo quando no final da carreira já estava fisicamente inapropriado para o papel. E como no papel de Tonio em "A Filha do Regimento", não obstante aqueles nove agudos em "Ah! mes amis", Pavarotti era o mais inocentemente ardente dos jovens amantes.

Através das gravações, temos magníficos papéis de bel canto com a soprano Joan Sutherland, como Arturo em "Os Puritanos" ou Elvino em “A Sonâmbula" de Bellini". Talvez seja aqui que se encontre a verdadeira realização de Pavarotti: como um dos tenores de Bellini e Donizetti mais elegantes, precisos e generosos da segunda metade do século XX.

Neste ponto podemos até pensar se não teriam sido talvez Sutherland e o seu marido, o maestro Richard Bonynge, que completaram o trabalho que Ettore Campogalliani começara em Mântua? Pavarotti juntou-se a eles em meados dos anos 1960, fazendo sua estreia americana como Edgardo ao lado de Sutherland como Lucia em "Lucia di Lammermoor" de Donizetti em Miami. Sutherland diz que ajudaram Pavarotti com a sua respiração. Mas talvez tenha sido sobretudo a importância de um legato adequado a este repertório que ele aprendeu com ela e Bonynge.

Quanto à dicção, isso era algo que o tenor poderia ter ensinado à sua soprano. A dicção de Pavarotti era impecável, cada palavra cristalinamente clara. A voz em si começou como platina, absolutamente precisa – Pavarotti tinha uma afinação perfeita – e brilhante como diamante. Havia algo visceralmente emocionante no timbre no topo da voz, mas também uma cativante vulnerabilidade no seu canto suave. Quando ele se soltava, era uma força da natureza. Podemos pensar muitas vezes como os seus colegas cantores devem ter desejado ter uma barra para se agarrarem ao cenário quando inundados por toda aquela generosidade vocal e emocional. 

Nos anos posteriores, à medida que a voz escurecia, a platina cedia lugar a algo como prata antiga. Há uma certa qualidade polida em todas as suas gravações de Verdi, uma patina bonita na voz aliada à sua excecional precisão, embora Pavarotti ainda pudesse evocar o heroico. Nos últimos anos, ele soou glorioso em palco como Radamès na "Aida" de Verdi.

As comparações são odiosas, mas inevitáveis, particularmente após o primeiro triunfo dos Três Tenores no concerto do Mundial de Futebol em Roma no ano de 1990 – aquele momento extraordinário na era moderna em que a ópera mais uma vez sai disparada do palco e torna-sr se propriedade de todos. Pavarotti foi talvez menos aventureiro que Plácido Domingo, particularmente na escolha de seu repertório, mas ele era mais lírico. Podia soar tão vulnerável quanto José Carreras, mas muito mais seguro do registro de peito até as notas de cabeça. Acima de tudo, ele era um tenor italiano, para quem a voz era tudo e para quem entreter uma audiência era primordial. Eletrizando-nos com o poder da voz humana; fazendo-nos rir – e ele não era nada mau como comediante; e fazendo-nos chorar.

É um verdadeiro risco tentar selecionar as melhores gravações de Pavarotti. As suas gravações de ópera, ao contrário dos concertos que preencheram os seus anos finais, permanecem notavelmente consistentes. A carreira de Pavarotti disparou internacionalmente através de sua parceria no palco com Joan Sutherland, e as suas gravações capturaram o melhor da sua juventude - entre as quais "A Filha do Regimento" de Donizetti, o papel que o lançou no Covent Garden e no Met com seu famoso final do primeiro ato. O brilhante alcance vocal de Pavarotti, o legato seguro, a personalidade exuberante e os nove dós agudos são uma combinação vencedora.

Ele mostra-se igualmente hábil no bel canto mais sério como "Lucia di Lammermoor" e “A Favorita” de Donizetti, e ainda mais em "Os Puritanos" e “Beatrice di Tenda” de Bellini, tanto como estrela quanto artista de conjunto. Ele dá-nos um "A te, o cara" com uma autoconfiança e elegância deslumbrantes, ao mesmo tempo que nos presenteia com uma delicadeza incomum e um tom melado que marcam a sensibilidade que ele poderia trazer para suas caracterizações.

Com "Rigoletto" de Verdi, ele entra no mundo dramaticamente mais sombrio de Verdi. A música do Duque, focada, claro, em "La donna e mobile", exala ardor juvenil e predação sexual impiedosa, e a voz de Pavarotti abrange tanto a sedução quanto o aço com um naturalismo enganosamente sem esforço. Verdi nem sempre se adequou a Pavarotti, no entanto as suas interpretações de “O Trovador”, com Bonynge e esse trio eletrizante composto por si, Sutherland e Horne, “Um Baile de Máscaras” com Solti, e “Aida” com Maazel, são absolutamente incontornáveis.

Em tempos ele admitiu com bonomia que não era o “tenore di forza” que os papéis mais pesados exigem. No entanto, os tenores de Puccini, com suas dimensões mais humanas, pareciam quase feitos à medida para sua voz e caráter. O seu Pinkerton ("Madam Butterfly") e Cavaradossi ("Tosca") são impressionantes, mas os dois registros que se destacam como o seu maior legado são a sua "La bohème" com Karajan e a sua amiga de infância Mirella Freni (fica aqui a título de curiosidade outra referência desta ópera com Pavarotti ao vivo no Scala, dirigido por Kleiber com Cotrubas, Cappuccilli e Popp), e “Turandot" com um elenco inesperado para a altura, que inclui para além de Pavarotti, Joan Sutherland, Montserrat Caballé e Nicolai Ghiaurov e a direção de Zubin Mehta. A sua forte abordagem lírico-spinto faz desta gravação e deste papel um triunfo.

Pavarotti , ao contrário de outros tenores, praticamente nunca olhou além do idioma italiano e do grande repertório de sua pátria. No entanto, as suas aventuras mozartianas também não devem ser esquecidas, embora sejam cantadas demais para os gostos modernos. Vale bem a pena procurar em várias marcas históricas a sua estreia em Glyndebourne  em 1963 como Idamante em " Idomeneo ", com Richard Lewis e Gundula Janowitz , ou o mais recente dirigido em Viena por Pritchard com Pavarotti no papel título, acompanhado de um elenco inacreditável que inclui Gruberova , Baltsa , Popp  e Nucci .

Por fim a referência a outros dois títulos: o Guilherme Tell de Gioacchino Rossini que gravou sob a direção de Riccardo Chailly , com Freni , Milnes  e Ghiaurov ; e o Mefistófeles de Arrigo Boito , que gravou com Ghiaurov , Freni  e Caballé , dirigido por Oliviero De Fabritiis .

Para os mais leigos em ópera, nada como um passeio pelas inúmeras compilações ou por concertos como “Os Três Tenores” e “Pavarotti & Friends”.

Logo abaixo, você poderá ver um vídeo produzido pela  ProART  em homenagem a este grande teor:


A seguir, compartilho alguns de meus álbuns e vídeos preferidos:



* André Cunha Leal  é diretor artístico de Óperas, e apresentador dos programas Metropolitan e Mezza-Vocce da Antena 2 , e é também um dos Fundadores da ProART .